quarta-feira, 28 de abril de 2021
O arqueiro solitário
Querosene parecia ser um neguinho como outro qualquer. Mas seu apelido não fora dado à toa. Moleque arisco bom de bola, de lábia e de briga. Cresceu solto, como os outros que moravam no subúrbio, próximo da mata e das antigas fazendas de gado. Também gostava de soltar pipa e caçar passarinhos e preás. Morava com a mãe - o pai não conhecia nem de foto - onde as casas eram cobertas com folhas de bananeira e as paredes com sopapo de lama no bambu trançado. Tudo ao lado do riacho onde tomava banho e pegava água prá cozinhar o feijão no fogão a lenha. Às vezes, sua única refeição.
Mas se sentia feliz e pronto prá voar. Retinto como a noite, Querosene queria brilhar feito o sol que esturricava sua pele enquanto pegava no gol no campinho irregular improvisado num antigo pasto. A trave improvisada de madeira perigava cair na sua cabeça, só mesmo Deus pra evitar. A molecada corria, chutava, gargalhava, sonhava e Querosene defendia. Agarrava com unhas e dentes a pelota, se jogava sem medo de machucar.
A escola mais próxima ficava tão longe quanto a chance dele conseguir ter sucesso na vida. Mas o neguinho era um lamparão ensaboado. Tinha uma ânsia danada, difícil curar. Queria ser arqueiro como seu ídolo Barbosa e no escrete nacional jogar. Ser rico, dar orgulho à sua mãe fazendo o que amava... até, quem sabe, ter uma placa, com suas mãos gravadas, na calçada da fama do então maior estádio do mundo, o Maracanã.
Sonhar é de graça feito o ar que se respira. Um direito natural do homem e dos meninos.
O tempo passava e o moleque crescia. Olhava e não via sua hora chegar. Seus amigos já pegavam no batente prá ajudar os pais, enquanto Querosene, que nem sabia mais seu nome de batismo, corria os sete campos de pelada da cidade, convidado que era pelos inúmeros times que existiam. Sua fama corria as cercanias. Até “bicho” levava por partidas jogadas.
Mas foi aí aprendeu que podia ganhar perdendo. Era só combinar. Sempre aparecia um prá pagar. Se ali já estava bom, imagina num grande centro?
Mas a concorrência seria grande e a vida adulta se impunha. Ajudar em casa era preciso, sua mãe viúva, uma mulher guerreira, estava cansada, ele não podia falhar feito um frangueiro. Sem querer desistir da pelota, o rapaz resolveu pegar o trem pra tentar a sorte na capital. Afinal tinha vários amigos jogando por lá.
Querosene pegou os documentos, uma sacola com poucas roupas e sua luva, um bolo de fubá, duas roscas secas no armário da cozinha, tomou uma caneca de café, deu um beijo na testa de dona Cotinha e embarcou decidido no vagão noturno, amanhecendo com a cara e a coragem na porta do tricolor das Laranjeiras. Lá não passou do portão. Tentou o time da Colina, outro “não”. Foi prá Madureira, chegou a Bangu, passou por Campo Grande, acabou na Leopoldina, desiludido, apenas prá morar e viver de bicos.
Vaidoso, sempre que voltava prá ver sua gente, dizia que tudo estava por acontecer. Falava que treinava numa Associação Esportiva grande, apontava fotos de craques no Jornal dos Sports (JS), dizia que conhecia, apenas prá impressionar.
Desfilava perante os amigos bem vestido e com cabelo penteado. Sempre levava um exemplar do JS debaixo do braço.
Lia mais classificados do que as páginas de esporte. Usava loção boa, relógio dourado. Querosene se tornara um malandro carioca visitando pseudos otários - gente simples que mais ouvia do que falava. Que ria das prosas, mas desconfiava.
Naquela altura, sabe-se lá como, Querosene tinha um fusca azul, usava sapato bico fino, cordão grosso no pescoço, óculos Ray-Ban escuro - igual dos filmes de ação - mas vê-lo perfilado com seu time, em plena segunda feira na banca de jornal, isso não. O tempo não para e a vida não cabe em 90 minutos. Querosene sabia e dava seus pulos, fazia suas pontes imaginárias. Saltava feito um goleiro de seleção.
Um dia inventou um problema no joelho prá não falar mais de bola. Passou a mancar enquanto andava. Dando um “migué” prá torcida da arquibancada imaginária.Foi a deixa exata. Nunca mais falou de bola. Querosene era gente boa, elegante na sua calça boca de sino, seu cabelo Black Power e sua camisa aberta até o meio do peito raspado à mostra. Não se permitia menos luxo do que via, sentia que aquilo ali também deveria ser seu. Queria desfrutar do que a vida tinha de melhor. Não quis estudar, mas estudar não garantia nada mesmo. Solto no Rio, daria seu jeito.
Unhas feitas, mão macias, algo raro naquele tempo, galanteava as empregadas que vinham prá capital trabalhar e dormia escondido nos seus micro quartos, sempre abafados, no fundo dos apartamentos chiques da Zona Sul. Para tanto tinha várias noivas deslumbradas com o príncipe que se apresentava. Prá sobreviver, Querosene, se deixou levar, vestiu uma fantasia que não mais conseguiria tirar. Apostou errado.
Entrou prá hierarquia do crime e dali era impossível voltar. Casou com uma, amasiou com outras, teve filhos com todas e não conseguiu se achar. Um sujeito sem acesso, sem tutor e orgulhoso.
Querosene se deixou levar pela lábia dos verdadeiros malandros das quebradas. Gente do Porto, do jogo, da polícia, da agiotagem e ousou achar ser um deles. Dava um tombo em um, ia pra outro lugar. Não media o perigo a rondar, se sentia o mais esperto de todos. Mas não tinha padrinho em nenhum lugar. Seu cobertor era curto demais. Aqueles não eram iguais ao povo que visitava na sua terra natal. Aqueles eram profissionais do crime. Gente do submundo.
De tanto armar prá se dar bem, com a desculpa esfarrapada e delirante de dar uma vida boa prá patroa e as crianças, quebrou o pacto que não se pode quebrar. Para isso não tem perdão. É corpo no chão ou no micro ondas do alto da pedreira. Num domingo à noite o acerto começou a se cumprir.
Uma bala encontrou seu abdômen e a outra seu ombro esquerdo, raspando o coração. O sangue rolou na calçada quente do subúrbio ao som das badaladas do sino da igreja, que anunciava a missa das 18 horas.
Os vizinhos ouviram e o acudiram. Todos gostavam dele e das mentiras que nunca parou de contar. Flor, amor de uma vida, da janela viu a emboscada e sem força, não conseguiu ir até lá. Segurou as crianças e se pôs a chorar. Ela sabia que esse dia chegaria mais cedo do que Querosene imaginava. A vida escorrendo pela sarjeta da calçada, sendo engolida pela boca de lobo da manilha entupida de lixo e sangue. O homem forte sobreviveu.
Mas conselhos não ouvia nem de quem gostava. Confiava no seu faro, mas esse falhara. Querosene sumiu achando que voltava, que a distância lhe daria uns acréscimos na partida da vida. Beijou sua Flor e as crianças e foi se entocar. Deixou tudo pra trás, até o que não queria deixar.
Um dia chegou a notícia que fora abatido na noite passada. Dizem que seu corpo jazz num valão de Caxias. Num mangue negro igual à sua cor.
Querosene não teve direito nem a um enterro justo, jamais foi encontrado.
O homem que queria correr o mundo atrás da bola, incendiar a torcida com suas defesas, deu de cara com a realidade.
Foi executado. O esperto virou “presunto” e não teve obituário. Recebeu um cartão vermelho da vida, sendo expulso da peleja sem ao menos entrar em campo. Querosene fora um menino bom e alegre que ousou sonhar.
Se o “se” entrasse em campo, todo goleiro defenderia o pênalti do título e sairia de cena nos braços da torcida.
Conto escrito por Alfredo Soares inspirado numa história real
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